quinta-feira, 14 de julho de 2011

Assim vai o património romano da nossa região....

Trasncrevemos um artigo da Dra. Joaquina Soares, publicado no "setubal na Rede", a quem agardecemos:

Património


por Joaquina Soares
(Directora do MAEDS)

Disse património cultural? Atentado em Sines?

O conceito de património enquanto interlocutor privilegiado com o Passado, ou seja, enquanto garantia de continuidade e de sucesso do Presente, é intrínseco ao “ser social”, e, por isso, inquestionável factor de coesão. O património cultural constitui, metaforicamente, o “genoma” das comunidades humanas. Código da vida colectiva. Tal como as restantes componentes da vida social, transforma-se, reinterpreta-se e recria-se.
Fundamentalmente, o património colectivo reside na paisagem, espaço antropizado e “classificado” nos sistemas de povoamento e nas estratégias de subsistência dos diversos territórios. Mas existe também um património individual que se transmite por herança, e que possui um papel relevante na manutenção das relações de parentesco, da família à linhagem. Esse património móvel, marcador de filiação e de estatuto, encontra nas coleções museológicas o seu equivalente para a escala comunitária.
Qualquer uma das modalidades do património pressupõe as funções de conservação, investigação e valorização, segundo metodologias condicionadas pelo paradigma de património vigente para cada período histórico. Desinvestir no património cultural é obviamente investir no obscurantismo, na fragmentação e desconexão sociais, na incompetência sociotécnica intelectual e emotiva. Os efeitos destas medidas políticas desencadeiam estagnação e recessão sociocultural e, em última instância, podem desintegrar as respectivas formações sociais. As elites políticas que não entendem este mecanismo de sobrevivência social arrastam as populações que governam para árduas e inúteis viagens amnésicas, e, no limite, para a dissolução.
Na presente conjuntura, enfatizo a própria essência do património cultural, deixando para outra oportunidade a análise das suas diversas valências, nomeadamente o tão discutido efeito de trickle down (potenciação das atividades económicas e da criação de emprego), pois tenho de lamentar com veemência a abolição do Ministério da Cultura, medida por si só premonitória do caminho de pujante iliteracia que se anunciará mais adiante.
Aqui mesmo no Distrito de Setúbal, à cidade de Sines acaba de ser subtraída uma parcela do seu património, que não hesito em classificar de indispensável. Refiro-me aos vestígios da Sines Romana. Em terreno contíguo à muralha exterior do castelo tardo-medieval, duas oficinas romanas de produção de salgas e molhos de peixe assinalavam até há alguns dias atrás a origem e vocação marítimo-portuária deste núcleo urbano. O porto de Sines e a ilha do Pessegueiro (antiga Poetanion), sua extensão, constituem não só o mais importante conjunto portuário da costa alentejana, como desenvolveram a fileira produtiva dos preparados piscícolas, entre o século I depois de Cristo e meados do século V, altura em que se registou o seu abandono.
Tal como no Baixo Sado, a crise do século III na região de Sines, encontra-se bem documentada e resolvida através da reorganização da produção, apostada então na diversificação da oferta, ao serviço de mercados mais segmentados e distintos que os existentes no Alto Império. O Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, sob a direção de Carlos Tavares da Silva [1], desenvolveu aqui na década de 90 do século XX um projecto de investigação, em torno desta problemática, escavando, estudando, publicando e apresentando ao público os vestígios dessa fase da história de Sines.
Pacientemente, estas arquiteturas milenares do núcleo histórico da cidade aguardaram em vão a conclusão do projeto de valorização. O espaço verde projetado, moldura do circuito de visita, com anfiteatro para fruição do espaço cultural e da baía, com apoio de cafetaria, foi sendo adiado. O abandono instalou-se; no sítio foi-se acumulando lixo e as legendas, apagadas por muitos sóis. Por fim, por decisão da Câmara Municipal, os vestígios arqueológicos fundadores do aglomerado urbano de Sines foram enterrados, devolvidos ao esquecimento, a favor de um parque de estacionamento, como se uns escassos metros quadrados abertos sobre o Passado fossem impeditivos de um qualquer outro uso da área envolvente...
Na semana passada, recebi um telefonema de uma cidadã sineense. Não acreditei no que ouvia. Perguntei: Disse património cultural? Atentado em Sines?
- Sim, estão a enterrar a memória desta terra e vocês não fazem nada!
Partilhei a sua indignação, sublinhando que cada cidadão conta, e que a vontade culturalmente esclarecida das populações é instrumento indispensável ao movimento da História.

[1] Para mais informação ver:

COELHO-SOARES, A. (2004) – Um projecto museológico para Sines. Musa. Museus, Arqueologia e Outros Patrimónios, vol. 1, p. 67-74.

TAVARES DA SILVA, C. e COELHO-SOARES, A. (2006)- Produção de preparados piscícolas na Sines romana. Setúbal Arqueológica, vol. XIII, p. 101-122.

TAVARES DA SILVA, C. e SOARES, J. (1993) – Ilha do Pessegueiro. Porto Romano da Costa Alentejana. Lisboa: ICN.

Joaquina Soares - 06-07-2011

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